Notícias sobre a Doutrina
      
      
Nº 1577 - 22 de dezembro de 1999
      Festa na floresta
      Gente do mundo inteiro viaja à Amazônia neste fim de ano e mostra a força do
      Santo Daime
      
      A italiana Tiziana (primeira à dir.) vai à floresta 
      confraternizar
      BRUNO WEIS E ALAN RODRIGUES - Céu do Mapiá (AM) 
      Pelos labirintos de um sinuoso igarapé afluente do rio Purus, no sul do Estado do
      Amazonas, quase fronteira com o Acre, chega-se ao centro do mundo. Ou quase isso. A vila
      Céu do Mapiá, maior comunidade da doutrina religiosa do Santo Dai-me do Brasil, está se
      transformando neste fim de ano numa espécie de torre de Babel tropical. A previsão é de
      que, até o dia 31 deste mês, mais de 500 turistas, entre brasileiros de Norte a Sul do
      País e estrangeiros de todos os cantos do planeta, cheguem ao lugarejo para a passagem de
      ano. Vão duplicar a população local. Não são, contudo, turistas acidentais. No Céu
      do Mapiá, ao contrário da bíblica torre de Babel, todos falam a mesma língua: a da
      doutrina do Santo Daime. 
      Ritual milenar  Criada na década de 30 pelo seringueiro Irineu Serra, a
      doutrina se baseia no uso religioso da ayahuasca, bebida psicoativa feita a partir da
      fervura de um cipó e de uma folha nativos da floresta. Mestre Irineu, como é conhecido,
      tomou o chá pela primeira vez em 1913 quando esteve em contato com caboclos em
      Brasiléia, cidade do extremo oeste acreano. Esses caboclos herdaram de seus ancestrais
      indígenas o conhecimento da ayahuasca. Seu consumo é uma tradição milenar no
      continente. Há indícios de que os incas já utilizavam a mistura em seus ritos. Sob seu
      efeito, Irineu vislumbrou a Virgem Maria e escreveu os hinários que sintetizam os
      ensinamentos da doutrina. Os hippies de São Paulo e do Rio de Janeiro que chegaram à
      Amazônia, no final dos anos 70, levaram a poção ao resto do Brasil. Na década de 80, o
      País inteiro descobriu o Santo Dai-me e seu ritual foi divulgado por estrelas da
      televisão que se doutrinaram. 
      A vila Céu do Mapiá foi fundada pelo seringueiro Sebastião Mota Melo, discípulo de
      Mestre Irineu, em 1983. Éramos um grupo de 30 pessoas. Chegamos para formar uma
      comunidade espiritual e trabalhar com a borracha, lembra o paulista Wilson Manzoni,
      43 anos, que aportou no lugar junto com Sebas-tião. Com o tempo, o Daime foi
      ganhando importância e se tornou a principal atividade da comunidade, diz Wilson.
      Neste fim de ano, a comunidade já é internacional e está promovendo uma celebração
      incomparável. Povos das mais diferentes origens peregrinam até o berço do Daime para
      sentir o poder da floresta contido na bebida. Em 17 anos, o Céu do Mapiá se tornou o
      seringal mais cosmopolita do mundo. 
      Califórnia-Mapiá  O cipó de nome jagube e a planta chamada rainha são
      misturados num processo de fabricação de várias horas, chamado feitio. O cozimento da
      mistura também demora dias. Depois da extração dos vegetais da mata, os homens maceram
      o cipó e as mulheres limpam e selecionam as folhas. A ingestão do chá lhes dá forças
      para a exaustiva tarefa de desfiar o cipó. Eles passam horas martelando sob o ritmo dos
      hinários. Minha força vinha de além do corpo. Me senti em comunhão com meus
      ancestrais, explica o americano Gian Carlo Petri, 21 anos, um dos cinco jovens
      californianos daimistas que chegaram ao Mapiá para passar dezembro e janeiro. Nos
      Estados Unidos pensam que é coisa de fanático, não sabem desse poder, diz Brock
      , 22 anos, estudante de Biologia. Eu sempre estudei plantas e quando tomei
      Daime tudo se juntou. Foi uma revelação. Não é uma simples alteração de
      consciência, é um ensinamento. Toda vez que eu tomo, aprendo algo novo, garante
      Brock. O intercâmbio étnico-cultural entre as Américas vai contar também com uma
      visita especial: 25 índios americanos irão realizar no Mapiá, no dia 31, um ritual com
      tambores e com sua planta mágica: o peyote. 
      No Brasil existem aproximadamente 20 igrejas do Daime, nos EUA elas são dez. Brock e
      Gian Carlo frequentam uma delas, conduzida por madrinha Luzia. Uma simpática americana
      quarentona, ela fala com desembaraço português. Eu falo mapiense, que é uma
      língua livre, brinca ela, que tomou o Daime em 1987 e hospeda seus conterrâneos em
      sua casa no Céu do Mapiá. Não tem lugar melhor para passar o Ano-Novo. Meu sonho
      é viver aqui, mas agora tenho de cuidar da igreja na Califórnia, afirma. Para os
      estrangeiros como Luzia, ir para a floresta é também conseguir exercer seu culto
      livremente. Estamos vivendo um momento de repressão ao Daime no mundo inteiro. Vir
      aqui é um modo de se fortalecer, explica Luzia. Ela tem razão. No Brasil, ao
      contrário de outros países, o chá do Santo Daime é considerado enteógeno, ou seja, o
      uso é permitido como parte de um ritual religioso. Na Europa, em outubro, duas igrejas
      foram fechadas, uma na Holanda e outra na Alemanha. 
      Preconceito  Mas, no interior da selva, a tradição da ayauhasca parece
      estar a salvo. Menos da imprensa. A comunidade cabocla se ressente de reportagens
      sensacionalistas e anda desconfiada de forasteiros armados de máquinas fotográficas e
      gravadores. Tem revista que vem aqui, pede nossa ajuda para trabalhar, e no final
      faz reportagens preconceituosas, critica Fernando Ribeiro, um dos dirigentes da
      comunidade. Numa das reportagens, o principal alvo foi o ex-guerrilheiro e escritor Alex
      Polari, hoje padrinho e um dos principais líderes no Mapiá. Nosso
      desafio ao abrir o Daime para o mundo é administrar esse choque cultural e essa
      afluência de pessoas sem fazer proselitismo, afirma Polari. 
      A arquiteta italiana Tiziana Vigani, 49 anos, está pela terceira vez na vila. Ela toma
      Daime em Assis, na Itália. Vir para a floresta, tomar banho no igarapé e passar um
      tempo com o povo com o qual nos identificamos é o projeto do ano, diz ela. Com o
      uniforme da doutrina, chamado farda, ela está realizada. O Daime me abre para
      relações baseadas no amor, na fraternidade. É vero. O cotidiano no Céu do Mapiá
      é mesmo peculiar. Lá não se vende cerveja nem cachaça. A tevê só chegou no ano
      passado, por insistência dos mais jovens, durante a Copa do Mundo. Há uma cozinha geral,
      onde todos podem comer e cozinhar, e muitos mutirões para a construção de casas.
      Está uma correria danada para a gente atender todos os irmãos que estão
      chegando, diz o morador Airton Oliveira da Silva, 24 anos. Airton representa um povo
      virtuoso. Como muitos ali, é educado, trabalhador e bem-humorado. A doutrina é um
      contato direto com as forças de Deus, de aperfeiçoamento. Isso torna a vida aqui
      diferente, afirma. 
      Medicina para a alma  A jornalista tcheca Vera Krincrajova, 30 anos, veio
      de Praga à procura desse aperfeiçoamento. As pessoas aqui são muito fortes e a
      floresta tem uma energia incrível. Pensei que vindo aqui e estando ao lado deles eu
      poderia ficar igual, elogia a moça, que chegou no começo de dezembro para passar
      seis semanas. Vejo o Daime como uma medicina para a alma. Quem acompanhou Vera
      e seus amigos tchecos foi a mapiense Aline Nunes, 23 anos. Ela já viajou três vezes para
      Praga, na República Tcheca, para coordenar rituais. Para muitos, ir ao centro do Daime é
      uma alternativa de vida. Não por acaso, alguns acabam construindo casa e ficando de vez.
      A questão da espiritualidade está forte na sociedade consumista, aponta o
      antropólogo Walter Dias, que acompanhou desde o início a popularização da doutrina.
      Foi o primeiro a trazê-la para São Paulo, em 1980. E muita gente está buscando
      outros valores, completa o antropólogo. 
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