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Bença.jpg (4774 bytes) História de Um Homem da Floresta
Estamos disponibilizando aqui o relato de Lúcio Mortimer sobre a vida do nosso Padrinho Sebastião Mota de Melo.

Capítulo 4 - 1ª Parte
A Grande Viagem


Imagina-se que foi com um nó na garganta e um aperto no coração que aquele homem de trinta e oito anos se despedia para sempre daquelas matas, do roçado, enfim dos "Torrões", onde se casou e viu nascer os filhos.

Quando se superam todas as dúvidas e, vem a convicção, a vida começa a se transformar imediatamente.
Sebastião vivia a dura labuta do seringueiro, produzindo a borracha que nunca dava de pagar as contas para o patrão e tirar algum saldo.
Quando largava a faca de seringa agarrava o terçado ou a enxada e o tempo era para o canavial e um partido de 6000 pés de macaxeira, que era o forte de sua lavoura.
Não era homem de ficar em casa alimentando a preguiça. Sempre teve fartura na mesa porque além de seringueiro e agricultor era também muito bom na caça e na pesca.
Agora, aquela terra, tantas vezes regada com seu suor, iria ficar para trás. A preocupação era a mudança para o Acre.
As atividades finais em casa, na "colocação" conhecida por todos como "Torrões", era principalmente o aproveitamento da cana para o açúcar e da macaxeira para o feitio da farinha.
Para o povo amazonico, a farinha é o principal alimento. O peixe e a carne dão "sustança", mas só vão bem na sua companhia. E, assim, nunca falta uma farofa! Na banana se dá uma mordida, e em seguida, com a mão se joga um punhado de farinha na boca. Assim se comem muitos frutos da floresta como os coquinhos de urucuri, tucumã e jací. Com água e açúcar preto, se prepara a "jacúba", que acaba com qualquer sintoma de fome. Os problemas de saúde que requerem uma alimentação mais leve são resolvidos com "caldo de caridade", que consiste no cozimento da farinha peneirada com água e praticamente nenhum tempero.
Incontáveis são as aplicações da macaxeira na dieta. Para o mingau das crianças ela é descascada, cortada em rodelas bem finas, secas no sol até ficarem crocantes, depois moidas no pilão, peneirada e, assim, se tem uma massa de otimo sabor.
Sebastião sempre teve milhares de pés desta abençoada batata. Waldete, seu filho mais velho, com doze anos, já era um companheiro firme no roçado, na farinhada e na moagem de cana. Walfredo, um pouco mais novo, assessorava a mãe, carregando água para a cozinha e no cuidado de Pedrinho (um ano) e de Ivanildo (com quatro). Meninos nesta idade dão um trabalho medonho e requerem um cuidado contínuo.
Os planos da viagem que antecediam a partida eram traçados com os poucos detalhes que requeria. A longa distancia até Cruzeiro do Sul seria dividida em duas etapas, com uma boa parada na casa de Alzira, irmã de Sebastião já casada, que vivia mais ou menos na metade do trecho a ser vencido subindo o rio Juruá.
Tinha um barco "regatão"(comercial) que com certa regularidade fazia a rota de Eurinepé para Cruzeiro, sempre levava e trazia a correspondência depositada na posta restante do correio. Uma carta, às vezes, poderia demorar meses para chegar ao destino, mas a comunicação era por aí, não tinha outro jeito.
Embora não soubesse ler nem escrever, Sebastião, com a ajuda de um amigo letrado, se comunicara com a família da mulher (em Rio Branco) e recebera uma resposta positiva.
Os Gregório estavam ocupando uma nova área de colonização perto de Rio Branco e estavam reservando um terreno para o assentamento deles.
O que era vendável, foi negociado: a espingarda, as redes de pesca, a farinha, o açúcar, as ferramentas de talhar canoa, até velhas dívidas foram cobradas. E, no fim, deu para apurar perto de oito mil contos de réis (aproximadamente dois mil reais).
O tempo combinado para a partida se aproximava veloz. Depois da farinha pronta, ele ainda precisava dar um volta na mata. Era importante um pouco de carne seca nas provisões da viagem. Um caçador "marupiara"(aquele que tem sorte) trata a caça com cuidado.
Não deixa os ossos espalhados e só mata por precisão. Em compensação é difícil dar uma caminhada por perdida.
Com equipamentos de pesca, farinha, sal, açúcar preto e carne seca, o problema da alimentação estava resolvido.
Arrumar as malas é só uma força de expressão, pois na realidade um seringueiro não tem mala nem bolsa. Tudo é guardado em sacos emborrachados que tem a vantagem de serem impermeáveis e de fabricação caseira. A bagagem era pouca. Nada supérfluo. Para cada um uma muda de roupa, uma rede, uma coberta, alguns utensílios de cozinha e só! Num único "paneiro" (cesto feito de cipó) cabiam todos os pertences familiares. Na hora da locomoção por terra podia levar tudo nas costas de uma vez.
No tempo do inverno, isto é, das chuvas e das cheias, é mais fácil sair do Adélia de canoa, pois o rio Juruá invade as terras baixas e vai lá pertinho. No tempo seco, quando o rio se limita a seu leito oficial, fica uma distancia de mais ou menos cinco horas até a margem. Outra alternativa para chegar até o rio, é descer pelo igarapé que vem da "terra firme" (terras mais altas) e passa pelos "Torrões", bem perto da morada. O igarapé é estreito, tem muita curva, alguns "balseiros" (vegetação nas margens do rio) mas dá de se navegar em uma canoa média. Com sete horas de manobras e bons remos, se chega no rio.
Um seringueiro tem por hábito acordar ainda na madrugada e assistir o amanhecer do dia em franca atividade. Assim, naquela radiosa manhã de sol do mês de agosto, os retirantes iniciaram a jornada em busca de uma nova terra. Uma alegria interior irradiava em todos pois era com fé e esperança que iriam enfrentar os desconfortos de um longa peregrinação em rumo do poente.
Cenas iguais a esta se repetem com frequência em todos aqueles seringais e nem sempre com um final feliz. Incontáveis são as famílias que se degradaram migrando para os arredores das cidades.
Pela falta de melhores oportunidades os jovens se enveredam pelos caminhos da ilusão, com bebidas, drogas, prostituição que terminam envolvidos em roubos, crimes e marginalidade.
Sebastião era homem religioso. Em sua vivência com o sogro, seu Idalino, ouvira as melhores mensagens do Evangelho. Com o Mestre Oswaldo aprendera a trabalhar na fé do espiritismo Kardecista. Com seu dom mediúnico de curador já tinha ajudado muita gente.
Ele não era um simples retirante em busca de melhores condições materiais. Era o desenvolvimento e o crescimento de seu universo espiritual que o impulsionava naquela viagem. Tinha toda a fé na proteção divina e a certeza de estar cumprindo uma missão recebida.
Imagina-se que foi com um nó na garganta e um aperto no coração que aquele homem de trinta e oito anos se despedia para sempre daquelas matas, do roçado, enfim dos "Torrões", onde se casou e viu nascer os filhos.
A canoa deslizou suavemente no rumo do Juruá. O silêncio era quebrado apenas pelo compasso dos remos batendo na água, mas logo depois da primeira curva, a animação tomou conta dos meninos que de imediato foram repreendidos pela mãe.
Sem grandes novidades fizeram a rota do igarapé. De notável só as pescarias do Waldete. Depois da terceira hora de viagem pararam em uma sombra para o lanche. O menino fez uma massinha dura de farinha, iscou no "anzolim " e rapidamente fisgou uma "piaba ", que se transformou em nova isca, desta vez para um anzol maior. Depois de lançada a linhada, em poucos minutos um tucunaré de um quilo e meio deu uma solapada na linha, sendo arrastado imediatamente. Não deu tempo para outro lance, porque ainda faltava muitas horas para o local da dormida. E tocaram para frente.
Quando o igarapé desaguou no Juruá, os horizontes se abriram. O rio largo margeado por praias de areia fina e barrancos era outra paisagem, aumentando em todos a sensação de estar fora de casa.
Não foi mencionado ainda mais um equipamento, importante para subir a correnteza: era um rolo de corda de quase cem metros, que há muito fazia parte dos seus pertences de trabalho. Este material era muito útil em diversas oportunidades.
A canoa logo foi encostando na praia e Sebastião anunciou que seguiriam a viagem "puxando na cisga". Amarrou a corda no bico de proa e saiu puxando a canoa andando pela praia. Os dois meninos maiores ajudavam na operação. Literalmente, passo a passo, ia vencendo a jornada. Nas curvas do rio, ou quando a praia morria no barranco, todos pulavam dentro da canoa. E aí era a vez do remo.
Um pouco antes das cinco horas da tarde, pararam em uma casa para o pernoite. Era de gente conhecida pois ainda não estavam muito distantes do seringal. Embora estivesse cansado Sebastião não recusou o convite para uma pescaria. Ali também sabiam que ele era um curador e uma criança logo foi trazida para ser rezada.
A viagem durou muitos e muitos dias. Nem se sabe precisar exatamente quantos. Talvez um mês só no rio, e outro na casa da Alzira, refazendo as energias, descansando do enfado da viagem. Rita estava grávida pela quinta vez.
O rio tinha praias que se perdiam de vista. Os três que puxavam a "cisga" agarravam na ponta da grande corda, a canoa ficava distante e Rita sentia solidão naquelas horas intermináveis. Às vezes um sentimento de temor pelo futuro de todos. Ela rezava e se confortava nas curvas do rio quando estavam todos reunidos, remando na travessia.
Um dia, finalmente, a cidade de Cruzeiro do Sul descortinou-se no cenário da viagem.
Tinham o endereço de um primo que logo foi localizado. Parente é muito bom, principalmente numa situação como aquela.
O meio de transporte, agora, era uma carona num avião da FAB (Força Aérea Brasileira) que quinzenalmente fazia a rota de Manaus para Rio Branco, passando por Cruzeiro do Sul. O irmão mais velho de Rita, Francisco Gregório, aquele que no tempo da migração familiar não foi para o Juruá, tinha se engajado no Exército em Rio Branco e a esta altura envergava a patente de terceiro-sargento. Com seu prestígio militar, havia inscrito na lista de passageiros da FAB Sebastião e sua família.
Mais uma semana na cidade e finalmente mais um momento de grande emoção: a primeira viagem aérea é sempre precedida por uma certa ansiedade. Ela era enfim o rompimento do cordão que os ligava àquela área do rio Juruá. Era o voo da conquista de uma nova era para a família.
E lá foram eles levados pelas asas do barulhento bimotor para o desfecho desta inesquecível jornada.

Obs: Até o ano de 1944, os relatos são narrativas. A partir desta data os relatos serão baseados em depoimentos de contemporâneos.


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