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Bença.jpg (4774 bytes) História de Um Homem da Floresta
Estamos disponibilizando aqui o relato de Lúcio Mortimer sobre a vida do nosso Padrinho Sebastião Mota de Melo.

Capítulo 5 - 1ª Parte
Chegada à Colônia Cinco Mil


Cristina Raulino, esposa de Nel, o irmão de Rita, finalmente conseguira fazer dormir a pequena Sílvia que neste dia estava muito excitada e deu trabalho.
Já passavam das duas horas da tarde. O marido retornara do roçado e ela planejava repousar um pouco balançando na rede armada na cozinha. A tarde estava quente e a batalha de cuidar de um filha de três meses e da casa a deixava muito cansada.
Ao atravessar o corredor no rumo da cozinha, olhou pela janela, avistou o campo e o caminho que ligava à estrada. Além disso alguém muito especial lhe chamou a atenção: era a chegada dos retirantes amazônicos. Finalmente rompiam nas terras acreanas. Valdete e Valfredo na frente, Rita com sua gravidez proeminente trazia Pedro Mota encaixado do seu lado direito como uma montaria. O braço direito lhe dava sustentação. Do outro lado, andando com passinhos miúdos vinha Ivanildo agarrado na sua saia. Atrás de todos trazendo nas costas o grande paneiro (cesto de cipó), era Sebastião com toda a mudança da família. Caminhava a passos curtos e se dirigiam para casa de "Seu Idalino" e Dona Maria, pais de Rita, que ficava à esquerda, uns trezentos metros da morada de Cristina de onde estavam sendo observados.
O avião que saíra às oito horas da manhã de Cruzeiro do Sul, depois de pequenas escalas nas cidades de Feijó e Tarauacá, aterrissara no aeroporto de Rio Branco por volta de meio-dia. A viagem, a bordo do bimotor do tempo da Segunda Guerra, transcorrera sem novidades.
A família tinha um parente "forte" na cidade: o sargento "Gregório". Isto dava tranquilidade e segurança ao desembarcarem naquelas distantes terras acreanas. A visão de carros e um caminhão mais o movimento de gente deixavam atônitos os meninos. Sebastião precisou fazer uma forte oração e receber uma atuação de calma e serenidade para manter a situação sob controle.
Achar um militar em Rio Branco não parecia difícil. Sairia perguntando pelo quartel e lá certamente ele estaria para ajudar no encontro dos parentes.
Deixou a família instalada nos duros bancos de madeira no velho e acanhado aeroporto e saiu para o mundo. Pergunta daqui, confere ali, acabou chegando no quartel em menos de meia hora. Era um dia de sorte, pois facilmente localizou o sargento que fez um apelo aos seus superiores conseguindo uma caminhonete para levá-los ao destino.
Seguiram até o quilômetro onze da Estrada de Porto Acre e dali por mais dois quilômetros a pé até a localidade chamada "Colônia Cinco Mil". Andar de carro pela primeira vez estava sendo uma grande emoção para a família. O trajeto era curto. Com pouco mais de meia hora estavam eles atravessando o ensolarado campo e chegando na meta final.
Muita emoção no encontro. Mais de dez anos de saudade. Dona Maria, muito emotiva, não resistia às lágrimas, com muita satisfação abraçava e abençoava a todos. Seu Idalino também tinha profunda alegria, pois Rita com a família eram os que faltavam para a união deles, que já muitos anos atrás deixaram o Rio Grande do Norte. Agora finalmente todos estavam em terra própria. Pouco mais de setenta hectares de uma área boa para a agricultura com a fartura de água, coisa rara na antiga moradia, no sertão do nordeste brasileiro.
Uma das filhas, a Naninha, casada com o Pedrão ficou residindo em Rio Branco, assim como o sargento Gregório, mas estavam ali por perto. Com os recém chegados a união estava completa.
A localidade que ocupavam era conhecida por "Cinco Mil", constituída por colônias de doze e meio hectares, desmembrados do "Seringal Empresa". Como já foi dito, o baixo custo da borracha determinara o fim dos seringais, principalmente dos que rodeavam Rio Branco. A atividade dos trabalhadores se voltara para a terra. Agora todos queriam derrubar um pedaço da mata para fazer lavoura, criar gado e ter produtos agrícolas negociáveis na cidade.
O exótico nome "Cinco Mil" era devido ao preço de cada um destes lotes de doze e meio hectares. Custavam cinco mil "contos de réis", quantia modesta que hoje significaria de quinhentos a setecentos reais, aproximadamente.
Naturalmente foi com grande sacrifício e determinação que os Gregórios levantaram os recursos para ali se estabelecerem. Estavam assim repartidos: Manoel (Nel) e Cristina com vinte e cinco hectares, Julia casada com Chico Gregório, doze e meio hectares. Seu Idalino e Dona Maria que viviam com Teresa, única filha solteira, construíram a casa no terreno do Nel. Tinham comprado uma colônia mas a guardavam para presentear a Rita e Sebastião.
Os recém-chegados ficaram na casa do Nel que era dotada de cozinha e sala grande com possibilidade para atar todas as redes. O resto da tarde foi dedicado aos cumprimentos e arrumações de chegada. No outro dia, cedinho, Sebastião já estava com o terçado (grande facão) pronto para iniciar a "broca" do canto da nova casa. "Broca" consiste em por abaixo toda vegetação rasteira e os arbustos da floresta, deixando a área preparada para a "derriba", o corte das árvores de porte, feito de machado.
Conhecer a área que iria ocupar, conferindo a floresta e os rios foi também um procedimento imediato. Era bom mateiro, não havia perigo de se perder em caminhadas na mata, mesmo que durassem horas.
Não possuía bússola nem precisava pois o sol em sua trajetória diária era um perfeito guia. Bastou andar alguns minutos para constatar muita diferença na floresta acreana. Era muito mais pobre sem árvores de porte, exceto o "cumaru ferro" de grande exuberância. Viu muita "taboca", que é sinal de terra fértil. Mas as madeiras boas para material de construção apresentavam-se mais raras como as "envideiras", a "farinha seca" e outras. Muita abundância de "matar-matar" que é mais fraca e sujeita a bicho. Achou muita vantagem ter encontrado palheiras de "jaci" que fornecem a melhor palha para cobertura de casa.
Agora sua atenção estava voltada para a realidade das caças. Andou, virou e nada de rastros de animais. No máximo alguma varedinha (caminho) de paca. Nem sinal de porco, anta ou veado. Caminhou mais um pouquinho e foi logo avistando o clarão de um roçado. Rapidamente compreendeu que toda aquela área estava esburacada, deveria ter gente por todo o lado e os animais que escaparam da panela deveria estar muitas e muitas léguas distantes. Parou e recordou as emocionantes caçadas no Juruá, quando podia fazer provisão de alimento para a família, além de compartilhar com muitas pessoas que vinham à sua casa.
Ao iniciar o caminho de volta chegou às margens do igarapé "Redenção", o mais importante da localidade. Na ida ele o atravessara por cima de um tronco e nem prestara atenção como era estreito e a água barrenta. Agora que vinha um tanto decepcionado, não pode deixar de recordar o já saudoso Vale do Juruá com grandes igarapés, igapós e os lagos naturais que o rio no período das grandes cheias vai encontrar. Nessas ocasiões, piracemas de peixes deixam o lago. São milhares e bastava meter a canoa no meio deles que eles começavam a pular e vão caindo a seus pés sem dar trabalho. Lembrou também da pescaria com arco e flecha, quando com arpão acertava um peixe grande, perseguindo-o até o cansaço para poder ser recolhido na canoa, transformado em provisão de "rancho" para muitos dias. No tempo seco, com sua tarrafa e linhada era garantida a fartura em casa.
Ficou pensativo e preocupado. Teria que trabalhar de sol a sol na terra para sustentar a família e comer feijão com arroz, coisas que não gostava. Quando seu espírito quis se entristecer, lembrou das palavras do Mestre Oswaldo lhe alertando: "Vai para o Acre. É lá que você tem o que aprender para realizar sua missão espiritual".
Sentindo muito conforto com essa lembrança se viu invadido por uma grande coragem de trabalhar e vencer. Com o coração transbordando de felicidade voltou decidido e confiante na proteção divina.
No clã dos Gregório, cada família trabalhava no seu próprio roçado. Nada era comunitário. Em ocasiões especiais, no ciclo dos plantios, se faziam os mutirões. Reuniam todos os vizinhos e cada dia o trabalho era na casa de um deles. Era comum se trocar o dia de trabalho. O ritmo de atividades era intenso.
Sebastião ainda conseguira chegar no Acre com algum dinheiro trazido do Juruá. Conferiu notas e moedas e viu que davam para comprar mais uma colônia de cinco mil com os doze e meio hectares, encostada da que fora presenteada pelo sogro. Também teve a sorte de encontrar um boi manso de carro por um preço camarada. Seria muito útil a construção da casa. Ainda deu para comprar açúcar, sal, café e querosene e ajudar na casa do Nel onde estava hospedado.
Com todos estes gastos, os recursos financeiros se acabaram rapidamente, mas o fato de estar morando próximo da cidade criava condições de conseguir novo dinheiro para bancar o indispensável. O mais imediato era produzir carvão. Nesse tempo em Rio Branco não existia o gás de cozinha e portanto o produto era muito vendável.
Na medida que ia abrindo o roçadinho para construir a casa e fazer sua primeira lavoura, aproveitava as madeiras mais adequadas, principalmente o "cumaru ferro" para fazer carvão. Com uma "roladeira" manual e a parceria de Valdete se cortavam as rolas das árvores. Eram muitas horas de suor devido as toras grossas e muito pesadas para o empilhamento, com a ajuda de alavancas e "bimbarras". Depois vinha a cobertura de terra deixando a frente aberta para começar o fogo. Fazer uma caieira dava muito trabalho. Quando estava acesa e toda coberta requeria atenção e reparos, principalmente nas primeiras vinte e quatro horas, pois era perigoso arrombar a capa da terra e a madeira se consumir perdendo todo o trabalho. Precisa vigiar de noite. Durava acesa três ou quatro dias e na hora de abrir era outra batalha. Gastava uma água carregada nas costas e a quentura desprendida era forte, sendo até prejudicial à saúde.
Sebastião não poupava seu corpo. Queria logo a casa pronta pois Rita já estava perto de ter criança e o empenho era para isso acontecer no próprio lar. Construir uma casa, produzindo o material e transportando é serviço de homem com "H maiúsculo". Se for um preguiçoso faz aquelas "taperinhas" com madeira fraca de pouca duração. Serviço de Sebastião sempre foi respeitado. A obra mediria oito metros de comprimento por seis metros de largura, faria também uma puxada estilo "rabo de Jacu" para a cozinha e assim daria relativo conforto à numerosa família. Tudo seria feito com madeira escolhida de primeira qualidade, dos barrotes aos caibros e ripas.
"Deus ajuda quem cedo madruga". O precioso tempo rende e numa jornada diária de trabalho se realizam muitas coisas. Levando a vida neste rumo, não custou muito a casa foi erguida e muito bem coberta com palhas de "Jaci", demonstrando o talento e capricho do construtor. A moradia própria deu rumo definitivo para a família alegrando muito a mãe porque todas elas gostam de estar no comando do próprio lar. Estava consolidado o novo tempo da Colônia Cinco Mil. A ocupação agora era com o roçado.


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