Site do Centro de Documentação e Memória - ICEFLU - Patrono Sebastião Mota de Melo

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Introdução: A Evolução das Doutrinas

Todas as doutrinas espirituais têm os seus fundamentos a serem preservados. Os maçons chamavam estes princípios inquestionáveis de “landmarks.” No entanto, no decorrer da evolução das tradições espirituais, quase sempre acontecem alguns desenvolvimentos. Isto por que, dentro da sua dinâmica, podem ocorrer interpretações diversas na forma responder à novas demandas que se colocam em outros contextos espirituais, sociais e culturais.
 
As doutrinas espirituais de um modo geral, assim como  toda a sua textura ritualística e cerimonial são portas de entrada que motivam homens e mulheres a adentrarem pela busca de uma perspectiva espiritual para as suas vidas. Elas se acham influenciadas pela evolução do tempo, da cultura e  dos paradigmas da condição humana que a regem, sintetizadas na tríade metafísica: Quem somos, de onde viemos para onde vamos?
 
Todas estas formas e desenhos rituais que as tradições nos legaram têm o mesmo objetivo, ou seja: criar um contexto sagrado para que, através do trabalho espiritual, cada um possa responder estas questões essenciais que a consciência se indaga quando aprisionada e identificada com a forma humana. É neste espaço que avançamos na tentativa de descobrir as raízes do nosso verdadeiro Ser, que estão além do nome e da forma. Esta nostalgia da alma de retornar à sua origem é o que verdadeiramente nos atrai à religião , palavra que vem do latim re-ligare e significa reconectar com a nossa essência interior, o nosso espírito e com a sensação maravilhosa de sermos parte desta Totalidade feita de consciência, existência e beatitude. 
 
Por sua vez, fatores culturais, históricos, geográficos, de língua, raça, etc, determinam, no curso das gerações, o fluxo de quem passa por cada um destes portais de entrada. É por isto também que existem tantos portais para atender a esta imensa diversidade de demandas espirituais. Talvez por este mesmo motivo foi que  o Mestre Jesus prometeu que iria preparar para seus seguidores muitas moradas no céu e não apenas uma. Sua Santidade o Dalai Lama também costuma enfatizar a importância desta diversidade dizendo que um restaurante que serve um único prato não agradaria a todos.
 
No decorrer de décadas e mesmo séculos, estas tradições que conseguem atender às novas demanda espirituais dos seus fiéis, são aquelas que mantém um viço e frescor que o tempo não consegue corroer. Mas tudo isto não é algo fácil e isento de riscos. Os  maiores riscos são quando as inovações introduzidas visam contemporizar com fatores seculares ou mesmo adular o gosto dos praticantes. Igualmente nocivo pode ser também o conservadorismo que, na ânsia de conservar uma suposta pureza original, se congela no tempo e termina sufocando o conteúdo em nome da forma, ou seja se fossilizando!
 
Um exemplo bem sucedido de evolução dentro da história está na tradição sufi, um ramo esotérico surgido no islamismo há cerca de 1200 anos e que soube (pelo menos algumas das suas escolas) conciliar seus princípios universais e ensinamentos com os mais distintos contextos, credos e culturas. O mesmo pode se dizer da coexistência e grande diversidade de pontos de vista dos grandes místicos cristãs, da Kabalah judaica e das variadas escolas filosóficas do hinduísmo e do budismo. Sempre que o verdadeiro misticismo se estabelece, ele consegue este equilíbrio, fugindo dos rigores e dos perigos da institucionalização através da flexibilidade da realização pela via da experiência. 
 
Quais seriam as causas e a lógica que promoveriam tais transformações? Sem dúvida poderíamos explicar isto de diversos modos, à luz das ciências sociais. É difícil vê-las atuando no presente, pois elas precisam de uma certa distância no tempo para serem sentidas. Mas mesmo que tenhamos consciência de quando, onde e por que elas atuam, nem sempre podemos controlar o processo e este é seu risco inerente, aliás, presente em todos os fenômenos desta ordem. Assim é que nos ensina a história das tradições espirituais sejam elas grandes ou pequenas, influentes ou insignificantes: uma sucessão de continuidades e descontinuidades e em alguns casos, rupturas. 
 
Uma vez que as doutrinas formam um corpo já coeso e homogêneo, se expandem pela mão de seus principais continuadores e difusores, interagem com outras situações e visões de mundo. Os mestres fundadores partem, deixam seus princípios e normalmente uma sucessão de linhagem bem ou mal resolvida. Dentro deste quadro, mecanismos institucionais são criados para preservar estes princípios que foram legados. E é aí que começam os problemas...isto por que tantos líderes quanto seguidores, como seres humanos que são, estão sujeitos às muitas vicissitudes da condição humana e das mazelas emocionais e políticas dos movimentos religiosos institucionalizados.
 

Evolução dos Hinários

Existe uma linha de evolução nos hinários, assim como no ritual de um modo geral. Os hinários foram se impondo como o trabalho principal do corpo doutrinário. Nos tempos do Mestre lá pelos idos do final dos anos cinquenta foi criado um dispositivo envolvendo um grupo de músicos, cantoras, um corpo de baile com pelotões e filas de fardados, com maracás sincronizados dando o ritmo, etc. 
 
Algumas pessoas tiveram um papel muito importante nesta questão da fidelidade dos hinários, como foi o caso da Dona Percília, que era quem o Mestre primeiro chamava para escutar os hinos novos. Como professora da comunidade e portanto mais conhecedora da língua, ela era quem "aproximava” o hinário do Mestre e demais seguidores para a norma culta, tornando mais compreensível o seu sentido. O padrinho Sebastião também apresentava seus hinos ao Mestre Irineu enquanto ele era vivo. Por isto teve alguns dos seus hinos ‘corrigidos' por Dona Percília. 
 
A verdade é que, depois da passagem do Mestre e dos seus companheiros, das divisões que ocorreram, da falta de gravações originais destes primeiros tempos, só restou a memória da Dona Percília e de algumas poucas pessoas com mais capacidade e memória musical para guardar este precioso acervo. Como é normal nestes casos, ocorreram algumas pequenas variações na transmissão oral de um para outro, na medida em que, além do grupo que permaneceu em torno da viúva Peregrina Gomes Serra, muito das outras fontes originais se transferiram para grupos dissidentes ou periféricos, depois da passagem do Mestre Irineu. 
 
Estas variações ocorrem de igreja para igreja em relação aos hinários do Mestre e companheiros na forma de cantar algumas notas, nas repetições e principalmente de variação na ênfases das sílabas tônicas. Também nem sempre coincidem as versões dos atuais guardiões com outros seguidores que também dizem conhece-los. 
 
A linha doutrinaria do Padrinho Sebastião (Santo Daime/ICEFLU) não pretendeu fazer nenhuma mudança neste campo dos hinários. Certamente podem e devem ter havido algumas destas variações citadas em relação ao que poderíamos considerar a versão mais antiga e original. Em muitos casos, mantivemos a versão da Dona Percília, que chegou a seguir o padrinho Sebastião e frequentar a igreja da Cinco Mil nos seus primeiros anos, juntamente com outros egressos do Alto Santo. 
 
Recentemente fizemos alguns estudos e coletamos as versões antigas que se encontravam ainda disponíveis. Chegamos mesmo a fazer uma gravação com os guardiões dos hinários dos companheiros. Constatamos algumas diferenças mas consideramos que elas não eram relevantes e que a nossa forma de cantar já tinha se espraiado, tornando difícil uma mudança brusca. 
 
Há alguns anos, o Conselho Doutrinário se reuniu para avaliar a questão e concluiu que era impossível hoje resgatar uma versão totalmente pura e original dos hinário do Mestre e dos Finados (Companheiros). Na verdade todas as versões existentes refletem algo muito próximo do que ela deve ter sido. Também concluiu que as diferenças não desabonavam nenhuma das versões existentes. Todas preservavam o essencial dos Hinários e sua mensagem. 
 
Foi neste sentido que concluímos em manter, por enquanto, a nossa forma de tocar e cantar, até o término deste longo e minucioso estudo comparado das versões. Temos assimilado algumas correções que pareceram lógicas e mantendo basicamente a versão a que chegamos pelas nossas próprias fontes, como os próprios Alfredo, Waldete e outros padrinhos, madrinhas e membros mais antigos que se familiarizaram com os hinários da base desde a época do Alto Santo.
 
O mesmo se aplica aos nossos próprios hinários que já fazem parte do seguimento e da expansão iniciada pelo padrinho Sebastião e que ainda estão sendo objeto de ajustes para uma edição final.
 
Portanto, por ocasião da abertura da biblioteca de hinários do nosso site, estamos disponibilizando boas gravações, algumas antigas e clássicas, outras  bastante recentes e atuais, que estão bastante próximas do que são nossas versões dos Hinários oficiais da ICEFLU. Elas valem provisoriamente para referência de padronização de execução em nossas igrejas, enquanto esperamos em breve realizar gravações e disponibilizar através do site, versões definitivas e revisadas com o selo do CSD/ICELU.
 
 
 

Evolução da Nossa Doutrina

No caso das doutrinas relacionadas com a Ayahuasca/Santo Daime, ocorre o mesmo que com as demais tradições. Iniciaram-se confinadas no seu habitat local.  Floresceram e se modelaram em contexto regional de acordo com o que dispuseram seus fundadores e guardiões, quase sempre mestres de grande conhecimento, carisma e reconhecimento por parte dos seus seguidores. 

A Doutrina do Mestre Irineu é ainda uma criança de 100 anos, se formos consideramos o recebimento da Lua Branca pelo Mestre Irineu como sendo seu marco inicial. Sua forma original já é um exemplo desta evolução adaptativa de uma tradição milenar anterior (no caso a ayahuasca) aos novos paradigmas culturais e civilizatórios do século XX. 
 
A grandeza espiritual do Mestre Irineu foi por em contato esta bebida sagrada e sua cultura nativa com a cultura mestiça, cabocla e finalmente com a cultura branca, cristã colonizadora. Com isto operou este resgaste e ao mesmo tempo uma síntese prodigiosa. Que hoje, menos de um século depois, espalhou-se novamente por todos os continentes, com sua mensagem de sabedoria e amor universal1
 
A doutrina do Mestre já estava esboçada pelo final dos anos trinta e início dos anos quarenta. Mas foi no final dos anos cinquenta para os sessenta que ela atingiu sua maturidade. Depois da passagem do Mestre, aconteceram as primeiras divisões (ou desenvolvimentos, dependendo do ponto de vista). Sendo que as de Sebastião Mota e Francisco Fernandes (Tetéo) foram as mais importantes. 
 
O seguimento original do trabalho do Mestre foi mantido de forma ortodoxa no CICLU-ALTO SANTO. No entanto, à sombra da árvore sombreira e frondosa que foi o mestre Raimundo Irineu Serra, nasceram muitas novas ramas. E todas elas julgam ter também alguma contribuição para dar ao seu desenvolvimento. Não temos aqui a pretensão de afirmar qual é a melhor nem medir quem é mais tradicional, original ou fiel à letra e ao espírito dos ensinos do Mestre Irineu. Acreditamos que todas têm seus méritos e estão seguindo seu próprio caminho evolutivo. 
 
O que nos interessa mais aqui é a linha espiritual da ICEFLU, nossa igreja. Seu corpo doutrinário está assentado de forma consistente nos ensinos e preceitos do Mestre Irineu, seu hinário do Cruzeiro e de seus companheiros. E também no desenvolvimento dado pelo Padrinho Sebastião Mota, seu patrono e fundador. Chamamos a nossa linha de Doutrina do Santo Daime. Por isto compreendemos a junção da Doutrina do Mestre Irineu com os ensinos do  Padrinho Sebastião. 
 
É bom frisar que no nosso caso, existe um diferencial muito importante, pois o Padrinho Sebastião não foi apenas um entre os discípulos que se destacaram a partir do contato com a espiritualidade do Mestre Irineu. Ele já chegou ao Mestre com uma sólida bagagem espiritual anterior de médium, curador e vidente.  Mesmo assim reteve a mesma base doutrinária do Mestre Irineu, de quem, mesmo discípulo, gozava de sua estima e sua confiança. Algum tempo após a passagem do Mestre, ele e seus seguidores passaram a realizar seus trabalhos na sede por ele criada na Colônia Cinco Mil. 
 
Os desenvolvimentos posteriores foram acontecendo pouco a pouco. O primeiro e mais importante deles foi abertura de espaço para o trabalho mediúnico. Isto também não era uma novidade nos tempos do Mestre, se considerarmos a evidente familiaridade dele com os caboclos e seres da floresta em seu hinário. Mas também é igualmente certo que apesar disto, ele nunca incorporou no seu desenho ritual um espaço próprio para as atuações, limitando-se ao uso de algumas chamadas em alguns tipos de trabalho e a seu critério2.
 
Já Sebastião Mota, com sua formação de médium anterior a sua própria adesão ao Santo Daime, não viu motivo em não dar este passo. Tanto mais que, dentro da sua comunidade, esta demanda surgiu, levando-o a achar necessário abrir este tipo de trabalho. O resultado disto foi a criação de uma casa (a Estrela) para a doutrinação e caridade espírita. Porém o núcleo dos seus ensinos continuou centrada no uso sacramental Santo Daime e na doutrina do Mestre, incluindo a inspiração e a influência do Circulo de Comunhão do Pensamento e a vasta literatura de apoio difundida por esta organização espiritualista e esotérica. 
 
A maior prova disto está em seu próprio hinário, que em alguns pontos dialoga e desenvolve muitas questões iniciadas e anunciadas pelos hinos do Mestre Irineu. Depois da passagem deste, seguiu seu próprio caminho, com o beneplácito do próprio Leôncio Gomes que ficara a frente do Alto Santo. Levou para a sua nova agremiação espírita não apenas o zelo aos hinários, a farda, as insígnias, como também a fé no sacramento que aprendeu a fazer como um dos principais feitores do próprio mestre. Ele se referia ao Santo Daime como a "água da vida”, aludindo às palavras da escritura sagrada. Levou ainda consigo fruto da intimidade que manteve com seu padrinho Raimundo Irineu Serra, uma inexorável convicção de que recebera das mãos deste sua missão espiritual e que ela deveria ser erguida no Amazonas. Motivo que o fez, muitos anos depois, sair do Acre em busca do seu destino. 
 
Uma nova ênfase foi dada à cura, caridade e iluminação espírita. Através do trabalho de Estrela e posteriormente os de São Miguel e Mesa Branca, reservados para o desenvolvimento mediúnico. Os calendários também sofreram modificações na medida que os hinários se diversificaram, assim como o reconhecimento de novos patronos. O Céu do Mapiá como “capital do Santo Daime", é um local que se tornou um centro de peregrinação e devido a isto tem um calendário de trabalho bem mais intenso do que as demais igrejas. Já nas igrejas filiais temos uma flexibilidade para realizarmos um calendário dentro da realidade dos grande centros urbanos.
 
Se existem algumas pequenas variações no que diz respeito  à execução dos hinários da base da Doutrina, isto não deixa de ser natural, pois é praticamente impossível reconstituir uma versão cem por cento pura dos mesmos, se é que algum dia tal coisa existiu.
 
Uma outra modificação importante, que foi feita já no tempo do Padrinho Alfredo foi o formato do salão que passou de retangular para hexagonal. A partir daí houveram também outras pequenas mudanças na constituição e acesso às filas, flexibilização no uso dos maracás, na forma e no ritmo dos hinários, etc. Abrandou-se um pouco no bailado o rigor e a disciplina marcial dos primeiros tempos.
 
Porém isto tudo na verdade são evoluções que, ao nosso ver, não afetam os fundamentos da doutrina. O sentido do trabalho, a contrição e o preparo necessário para comungar o Santo Daime, a atitude de interiorização e entrega para lidar com a Força e a Miração, o papel do “do professor dos professores" atuando no estado de expansão de consciência, a sabedoria para lidar com as visões e as passagens, a necessidade de trazer estas vivências e lições do trabalho para a vida prática, de dar o testemunho dos aprendizados da doutrina no seu dia a dia, na sua família e na vida social, tudo isso é rigorosamente o mesmo. E estes são realmente os fundamentos, que devem ser preservados, os landmarks que nos referimos no início.  
 
Outro aspecto a destacar foi sem dúvida a grande abertura do padrinho Sebastião para ampliar o seu conhecimento sobre outras linhas. O que o levou também a experimentar outras plantas de poder e ver em alguma delas, um grande proveito espiritual do ponto de vista da cura, da mediunidade e do autoconhecimento.
 
Também é relevante na nossa ritualística a evolução que houve no feitio da bebida sacramental. Não apenas no ritual como também no aproveitamento e no resultado da preparação da bebida sacramental. Talvez o feitio seja o exemplo mais evidente de como um fundamento deixado pelo Mestre Irineu obteve um progresso positivo através do padrinho Sebastião e posteriormente pelo Padrinho Alfredo. O desenvolvimento dado por eles fez com que o preparo da bebida sacramental ganhasse mais em refinamento espiritual, a ponto de se tornar um trabalho iniciático dos mais importantes e profundos para aqueles que deles participam, sejam homens ou mulheres.
 
Tanto os cuidados de limpeza, higiene, a bateção ritmada com o canto dos hinos, a concentração mental e o silêncio, o estudo de unir o trabalho físico exaustivo com a miração e a necessidade de alto nível de consciência e de atenção, os mistérios borbulhantes fervendo na panela, o sentido do tempo, das medidas, dos líquidos e dos apuros, a correlação entre o estado de nossa mente e cada etapa do processo do trabalho material, tudo isto faz sem dúvida do feitio uma autêntica escola espiritual e de alquimia interior.
 
Da mesma forma que tudo isto se desenrola ao nível astral, o estudo acurado da ciência dos cozimentos, suas combinações e recombinações nos trouxeram um conhecimento capaz de produzir uma bebida sacramental de diversos graus que, além de sua qualidade e luz espiritual, possibilita também um aproveitamento muito maior do material empregado, contribuindo para a sustentabilidade da produção da nossa Igreja e a preservação da nossa floresta. 
 
 
Alex Polari de Alverga 
 

1Um dos principais responsáveis por esta difusão e universalização da doutrina do Mestre coube a um dos seus discípulos, Sebastião Mota de Melo, também chamado de Padrinho Sebastião.

2Talvez por este motive quando se deparou com esta demanda mediúnica na sua própria irmandade, preferiu liberar oDaniel Pereira de Matos para realizar por conta própria este tipo de trabalho. D. Percília relata que nos trabalhos de exorcismo (Cruzes), às vezes podiam ocorrer alguns tipos de atuação 

 

A Corrente

A corrente é a força espiritual do trabalho. É o esforço empregado por cada um para que a comunhão de todos com o sacramento se revista de um profundo resultado espiritual. O bailado e a música geram uma energia que é canalizada pelas vibrações do maracá. Tudo isso propicia um trabalho interior de elevação espiritual e expansão de consciência que sustenta as mirações, os insights e diversos aprendizados que ocorrem durante o trabalho com cada membro da corrente.

Além de ser o ponto alto do trabalho espiritual, é o espelho da vida e das relações humanas no interior da comunidade. É a grande possibilidade de limpeza e transformação, quando todos, irmanados e ombreados na Corrente, passarão até doze horas cantando e bailando, viajando interiormente sob a condução dos hinos e da miração do Daime.

Os hinos guiam a nossa jornada ritual. Alertam, encorajam, aconselham e nos instruem para que possamos realizar nosso mergulho interior, sempre dentro da proteção da corrente.

A firmeza da corrente repousa na firmeza e consciência de cada irmão e na sua obediência às regras do trabalho.



 

Sobre Hinos e Hinários

Em nossa Doutrina, os hinários compõem o principal acervo de ensinamentos e o núcleo do corpo doutrinário da nossa Tradição. O fato dos ensinos espirituais serem transmitidos desta forma eminentemente musical remonta aos seus primórdios. Para ser mais exato, desde  momento que o Mestre Irineu recebeu, naquela noite de lua cheia, das mãos da Rainha da Floresta, a letra e a música do seu primeiro hino "Deus te salve ó Lua branca.
 
Segundo se conta, ele ainda hesitou em solfejar os versos da primeira estrofe, sendo porém incentivado neste sentido pela sua amiga “Clara” que era como a rainha se apresentava para ele. Talvez devamos a este começo tão peculiar o fato de que a nossa Doutrina tenha se tornado tão musical e o nosso trabalho tão sublime. Como diz o hino do nosso irmão Francisco Fernandes Filho, Tetéo: “nosso trabalho tem força e é profundo/não tem igual ele é o maior do mundo."
 

 
Quando penetramos dentro da força do Santo Daime pelos caminhos que os hinos nos levam, temos uma vivência interior profunda que se une a este espetáculo de rara beleza dos Hinários. É como se os hinos se transfigurassem e se tornassem veículos de um conhecimento de outra forma vedado à nossa consciência ordinária. Mais ainda: eles nos alertam e mobilizam para a percepção do Reino que existe dentro de nós, deixando ainda um rastro de ouro e prata fina, um sentimento de conforto espiritual e prazer estético. Mesmo com suas rimas pobres e sintaxe às vezes imperfeita, mesmo com suas e melodias na maior das vezes de grande simplicidade, como eles se prestam a induzirmos num verdadeiro êxtase! Seguindo suas palavras e as visões que a acompanham, podemos acessar os tesouros da grande consciência cósmica e a memória da sabedoria akhásica1 .
 
Este mecanismo estruturante do nosso corpo doutrinário também instaura uma verdadeira revolução democrática dentro da Doutrina. Pois a principio (pelo menos na vertente do Santo Daime), “nesta igualdade todos tem os mesmos direitos”, como diz o decreto do Mestre Irineu. O recebimento dos hinos está aberto a todos mediante o dom de cada um. E ao contrário do que poderíamos pensar, isto em nenhum momento cria um embaraço, descontinuidade ou contradição para a consolidação e evolução do corpo doutrinário. Pelo contrário, o fortalece.
 
Isto por que, sendo um mecanismo espiritual por excelência, é muito difícil afrontar com a verdade e a força dos ensinamentos que já estão codificados a partir das experiências dos mestres fundadores e que os hinários mais antigos já trouxeram. Podem ocorrer pequenas variáveis e ajustes e até mesmo atualizações, novos enfoques e revelações. Mas dificilmente ocorrem oposições, fraturas e colisões, ou palavras que neguem as verdades essenciais das revelações dos Hinários principais, assim como os princípios espirituais e éticos subjacentes.
 
Quando acontece alguma coisa, por mínima que seja neste sentido, ainda assim, para quem canaliza ou recebe um hino, não basta simplesmente recebe-lo. Principalmente se o canal de recepção não estiver aberto e bem conectado com a fonte espiritual e a experiência mística que o deu origem. Hinos não são compostos mas também nem todos são inteiramente lampejos mediúnicos. Dependendo do caso, eles podem ser recebidos de diversas maneiras: dentro da vivência da miração; no rescaldo da Força e por intuição em estado meditativo.
 
Além disto eles precisam ser provados por aqueles que o recebem. A mensagem de um hino, a força de um hinário se baseia principalmente no testemunho que cada aparelho receptor e participante dá na sua própria vida dos hinos que recebe e ou acolhe. E se esta relação não existe ou não é coerente, a sua aparente beleza se esvai dentro da Força e eles não são apreciados, confirmados e instruídos. Ou seja: não são assumidos pela irmandade. 
 
Um outro aspecto que também contribui para a consolidação da linha doutrinária é eminentemente espiritual e está na própria segurança do aparelho receptor, sua confiança e certeza de que trata-se de uma mensagem canalizada e não um mero capricho, repetição ou eco de um outro hino. Podemos até mesmo relembrar a história do Mestre Irineu hesitando em solfejar seu primeiro hino e o encorajamento da Rainha neste sentido, como sendo uma bela metáfora para explicar isto. Diz o hino do padrinho Alfredo: "É preciso confiar em si mesmo para ser pela doutrina resguardado”. E mais ainda para seu porta voz. Se houver dúvida na verdade da conexão obtida, não é ainda um hino. Mas se a vivência é clara para quem recebe e depois para quem compartilha o hino, ele termina se firmando. Por isto a voz do verdadeiro hino é considerada por nós como a linguagem escolhida pelo pano espiritual para transmitir seus ensinamentos.
 
É importante frisar que o mestre, naquele remoto dia lá pelos idos de 1912, não apenas recebeu o que seria o primeiro hino da doutrina em honra à sua padroeira mas também a forma de como a doutrina se desenvolveria e seria transmitida até os dias de  hoje.
 
O sistema funciona desta maneira: os aparelhos firmados e afinados recebem as melodias e as mensagens que por sua vez serão reconhecidas e assumidas por toda a irmandade. A força e a verdade da miração e da passagem que deu origem àqueles hinos tornam a experiência singular de um aparelho receptor em uma obra coletiva. No contexto do ritual, o Hinário é um balé cadenciado e coreografado, como uma forma de arte que une música e dança, abertura de consciência, firmeza, resistência e tudo que precisamos para atravessar toda a noite, alçar nossa consciência até as alturas espirituais. O cume da perfeição exigido para entrar no celestial
 
Além disto tudo, o reconhecimento do valor da mensagem do hino se traduz pelo interesse no estudo e na prática do mesmo, que em certo sentido é assumido como nosso e de todos. Como dizia o padrinho Mário Rogério, que nunca tinha recebido hinos (apenas ofertados): "Todos os hinos são meus, por que eu zelo por todos eles!” Ele dizia também que dentro da miração já tinha visitado a Casa dos Hinos no Astral. Nesta casa, os hinos estavam guardados em grandes estantes cheias de gaveta e cada um tinha uma luzinha que brilhava com cores diferentes. Os guardiões circulavam pela casa. Tinha um setor dos hinos já recebidos e de outros ainda por receber.

A força da corrente dos hinos e do Daime são garantias de uma experiência sadia e agregadora em termos psíquicos. A viagem espiritual e astral não pode ser bem traduzida por palavras mas gera um intenso estímulo para a prática da verdade. O bailado e o canto formam uma síntese unificadora. Celebração da Vida em todos os níveis. A vida da irmandade é uma constante liturgia: trabalhos espirituais, plantios, colheitas, festas, aniversários, reuniões, refeições, mutirões.
 
Os hinos guiam a nossa jornada ritual. Alertam, encorajam, aconselham e nos instruem para que possamos realizar nosso mergulho interior, sempre dentro da proteção da corrente.
 
Diz Padrinho Alex: "Uma das primeiras coisas que chama a atenção é o fato da Doutrina do Santo Daime ser absolutamente musical." A tal ponto que poderíamos dizer que a música é parte integrante dela, do cerne dos seus ensinamentos.
 
A música assume um caráter pedagógico mas sua função não se resume em sustentar um corpo doutrinário discursivo e sim, através do poder de sua própria vibração, abrir nosso espírito para esse sentimento inefável de bem-aventurança que só ocorre quando a consciência se funde à existência
 
Os hinos ocupam um lugar de destaque na Doutrina do Santo Daime, ao lado da bebida sacramental. É através dos hinos que todos recebem a orientação necessária para navegar na força do Daime durante a sessão. Por uma estranha sincronicidade, eles parecem, à luz do Daime, corresponderem as nossas mínimas necessidades durante a viagem astral da miração.
 
Os hinos podem ser portanto: lições preciosas para aqueles que os recebem; testemunhos de graças e curas recebidas; chamadas das entidades protetoras e guias espirituais e instruções para serem consideradas por toda a irmandade.
 
1Memoria akhásica, Segundo a teosofia é o registro no éter de tudo que ocorre no universo
 
 

A Miração

MIRAÇÃO E A CONSCIÊNCIA XAMÂNICA  - Alex Polari

O momento culminante de nosso trabalho é quando dentro da força do nosso sacramento, recebemos as visões, as quais denominamos mirações. Na miração não somos meros expectadores da nossa visão. Ao invés disso somos protagonistas de uma ação ue se passa num mundo real e ao mesmo tempo numinoso. Nesse estado é que somos convidados a apresentar nosso conhecimentoe aprender um pouquinho mais. O que decidimos e vivemos nesse plano, parece ter uma forte influência naquilo que consideramos ser nosso estado usual de consciência e de realidade.

Durante esse tempo sagrado da miração estão abertas as portas para muitas direções espirituais. O canal com o nosso Eu Superior se torna mais nítido. Podemos dialogar com ele e também receber muitas instruções úteis sobre aspectos práticos da nossa vida. Tudo que pensamos nessa sintonia com a miração está longe de ser um mero devaneio. O pensamento se torna uma vibração que modela, conserta, cura e cria.

A miração é um sonho divino, um sonho plasmador de vida. Padrinho Sebastião Mota dizia que primeiro tudo se resolve na miração para depois ser transposto e realizado em matéria.

Pode-se dizer que o xamanismo é o sistema de conhecimento espiritual mais arcaico que se conhece. E que, desde o começo, sua prática sempre esteve associada ao uso de enteógenos. Além de participar na maior parte de todas essas sensações, próprias dos demais estados expandidos de consciência, a consciência xamânica ou o estado de consciência xamânico também tem suas peculiaridades. A sua própria e já clássica definição como sendo "a arte do êxtase", já pressupõe que o xamã detém um conhecimento específico de operar no êxtase e esta é a sua maior arte. Através dela, ele se aproxima de forma consciente até o máximo limiar possível da aniquilação. É este o vôo do xamã: atingir a realidade além da nossa percepção usual, mantendo sempre aberta as portas de acesso ao mundo espiritual.

Porém o mais importante que queremos destacar dentro do xamanismo é a vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do transe. O Eu se torna o veículo divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath) que alça vôo em busca dos palácios celestes. Mas ele não se limita em contemplar seus átrios e fachadas reluzentes. Ele caminha por seus labirintos, túneis secretos, ele procura conhecer o que se passa em cada um de seus aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da "miração", um estado de consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão ritual do Santo Daime, que gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.

A "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo "mirar" corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo "mirante", que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra "miração" une contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. E que é simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol. 

Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma iniciação quietista - que prepara o neófito através do silêncio e da meditação - e a iniciação xamânica que o convida para ser protagonista totalmente responsável pelo seu desdobramento astral e vôo espiritual. Nele, somos convidados a participar de um filme em que as cenas que se desenrolam na tela, dependem, em última instância, do que está ocorrendo no interior da nossa consciência. Em outras palavras: só conseguiremos salvar a donzela do "filme astral" das garras do vilão, se a nossa disposição para tanto for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e a sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático. Caso contrário, a "narrativa visionária" sai do nosso controle podendo acontecer um desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao êxtase.

Estamos querendo dizer que dentro da miração o estado de ação e contemplação são como as faces complementares de uma mesma moeda. A mente, antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta várias outras fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência visionária da imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização. As imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro da "miração" são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa ordem de realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que a "miração" ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro do cenário feérico e numinoso da realidade xamânica.

Esse nível de consciência atingido pela "miração" vem quase sempre acompanhado de uma voz interior que guia, acompanha ou dirige o processo. esta é, ao meu ver, a faceta mais incomum e maravilhosa da "miração" do Daime. Durante o seu transcurso nossa consciência participa dos fenômenos psíquicos, noéticos e espirituais, através dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu comparece nos momentos decisivos e brevíssimos onde se decide sobre o nosso destino em meio às vagas probabilidades do mar de indeterminações quânticas.

Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável e eterno, manifestamos vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos a tecer a trama do próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da realidade e da vida. Isso significa que, no êxtase da "miração", estamos travando um diálogo com Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos sendo convocados para essa grande responsabilidade de sermos co-criadores do universo. E sem dúvida, só um destino com tal nobreza justifica o plano da criação divina, as provas da evolução, o porquê da queda luciférica, a entrada em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-lo e reunificá-lo com a verdade até o final dos tempos. Receber essa missão é o cerne da Revelação em todos os tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é adquirir a força de vontade suficiente para executar tudo o que foi revelado na miração.

Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e de coragem durante o vôo xamãnico poderia desestabilizar a "miração", ou o que é pior, fazer com que o fio narrativo da experiência visionária tenda para um desfecho desfavorável. Nesses reinos espirituais de deslumbrante beleza, parece que impera uma terrível justiça. O homem não está programado para ser perfeito. Ele tem que biológica, psicológica, social, moral e espiritualmente falando, escolher ser perfeito. Isso se faz através da faca de dois gumes do seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por um lado supera em estatura os deuses, devas e querubins, enquanto que por outro, se torna presa fácil da ambivalência de sua frágil inconsistência humana.

O Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita da ruptura do ego frente ao sublime, como sendo o momento em que, dentro da meditação, o meditador, sob a inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda), enfrenta as entidades terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o ego consegue se apossar do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente. Nesses momentos, as visões podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e isso está associado aos efeitos purgativos e miméticos da bebida enteógena indutora da "miração".

Reconhecido porém o impostor, é a hora da consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu desafio: Decifra-me ou te devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho compatível com a nossa presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não tivermos verdade para apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos come. O Poder nos cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar no caminho. Pois sem a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o impostor.

É o que Sebastião Mota, um dos principais "padrinhos" do Daime chama da necessidade de "ser em vez de parecer". Ser verdadeiro é pois a ciência para entramos totalmente seguros nos estados elevados de consciência e deles conseguirmos sair, trazendo no retorno novas aquisições para continuarmos a Busca. Nos níveis sutis, a verdade atrai a verdade. O ser manifestado enquanto verdade é a matéria prima da criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se apresenta a nós na miração aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças do seu quebra-cabeças divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra. A verdade do ser é exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para condicionamentos mentais, hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou papéis sociais. Se o nosso coração nos acusa, é porque não temos verdade. E sempre que esta falta de verdade interromper a nossa "miração", desestabilizando-a, devemos aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos conceda a chance de nossa transformação.

O sofrimento e o desconforto, que às vezes essa disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a autêntica terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos afastamos das ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do nobre script que Deus nos reservou.

Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da experiência mística, expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação extraordinária que é trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas oficinas seráficas da criação divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à atuação do Eu Superior no interior das imagens visionárias, como se a "miração" fosse um jogo interativo de "realidade virtual espiritual". Para que esse processo traga benefícios que possam ser incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.

Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos referir sucintamente a duas questões conexas à nossa abordagem de estado de consciência xamânico da "miração". Trata-se do carma e da mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura xamânica. Num certo sentido, a cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses estados elevados de consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna sobre as causas dos desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências visionárias do Eu no interior da "miração" também ocorre dele se lembrar de fatos relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões kármicos que precisam ser interrompidos nessa encarnação.

Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas ao transe e à incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de pequenos "eus" que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à primeira distração nossa, entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono. Em alguns estágios da "miração" podemos perceber esses "eus" como seres. Podemos perceber que cada pensamento que flui na nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor ajustar o nosso dial mediúnico para captar apenas a freqüência dos seres que nos interessam. Mas nem sempre podemos escolher o que chega à nossa mente. Portanto esse canal mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus pensamentos e afastar as más influências psíquicas e espirituais que podem se tornar nossos futuros obsessores.

Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da "miração" compreendido como um estado de percepção mística que guarda várias semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos um aspecto da "miração", a saber o da relação interativa do Eu com as visões, característica da tradição xamânica. Isso porque, a "miração" é ao mesmo tempo uma realidade visionária em movimento e um estado de contemplação extático. À maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e possibilidades de realização. Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes passa tempo trabalhando apenas alguns fotogramas. Sua meta suprema é a realização do Eu superior do homem. Apesar da ajuda inestimável das plantas sagradas para a sua consecução, o trabalho espiritual da "miração" nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de se manter coerente com os seus ensinos.

Algumas vezes, através da "miração", temos uma percepção clara da realidade espiritual da vida além do corpo. Penetramos assim no mistério que a nossa ignorância chama de morte, mas que não passa de uma transição para um outro estado de consciência. Voltar dessa experiência da "morte" com conhecimento do que isso seja, significa ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação, independente do credo que cada um professe.

Por isso consagramos o ser divino presente nessas plantas amigas e professoras do homem e a "miração" que ela nos fornece. Mesmo que o seu uso responsável seja sempre benéfico, é porém dentro de um contexto ritual e religioso, que sentimos uma maior segurança para a utilização profilática e terapêutica dos enteógenos.